quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Antigamente


Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam antigamente, eram para tirar o pai da forca, e não caiam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava a manta e azulava, dando as vila –diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao cinematógrafo, chupando balas de alteia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco sizo, se metiam em camisa de onze varas e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.

Havia os que tomaram chá em criança e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente”. Outros, ao se cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu exclamando: “ Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado”. E os eruditos, se alguém espirrava – sinal de defluxo – eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso a vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindros ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que era filho artioso.Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.

Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegos com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde satisfação a visita do cometa, que, andando por cerca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da Coorte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete Roscoff. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada ara vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.

Acontecia de o indivíduo apanhar constipação: ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phytsica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações; os meninos lombrigas; asthma, os gatos; os homens portavam ceroulas, botinas e capas-de-goma; a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O. London; não havia fotógrafos, mas retratistas; e os cristãos não morriam: descansavam.

Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.

Carlos Drummond de Andrade